terça-feira, 26 de outubro de 2010

Conto Vadio

Acordei na madrugada sufocada, a noite gélida que fazia em Tabira contrastava com a minha pele quente, suada. Garganta seca, implorava por algo que matasse a sede, algo mais poderoso do que a água, que pelo menos surtisse aquele efeito que a cerveja da propaganda comercial tanto revela.
Casa escura. Luzes apagadas. Sono profundo.
Trêmula, fui ao banheiro. Abri o chuveiro, deixei aquela água abraçar meu corpo, esfriar minha temperatura. Pela cerâmica branca que revestia o banheiro, refletia a minha beleza escondida, que num ápice do complexo narcisista de ser adorava até meus íntimos defeitos, passei a visualizar meu corpo e colocar virtudes naquilo que detestara: Meus pés tão odiados quando acho AQUELE scarpin e que não encontro meu número, mas que fica tão lindo com uma sandália sensualmente aberta deixando o moreno da minha pele se misturar com o branco do esmalte que tonaliza as unhas; Minhas pernas tão humanas de celulite e alguns vasinhos hereditários, mas que se endeusam quando ponho uma saia leve e que faz poesia quando desfilo faceira pelas ruas de Tabira, pernas de Cláudia Raia (será que ela tem celulite?); Minha barriguinha que nem as maiores abdominais, nem as melhores dietas conseguem vencê-la, mas que mesmo assim tem seu charme natural, até porque não tenho a mínima pretensão de ser fisiculturista...
Peguei o sabonete de rosas e alcaçuz e comecei a vestir minha pele com a espuma cremosa que fizera. Meus seios desnudos, médios, arrebitados ficaram levementemente brancos, minhas aréolas róseas ficaram rijas no toque da água. Que sensação gostosa. Vesti-me novamente do transparente da água, envolvi-me com óleo de amêndoas perfumado. Sequei-me e fui para o meu quarto.
Ao chegar, tive um misto de susto e felicidade: era meu anjo, com um robe de seda vermelho, que estava sentado na minha cama, me esperando para velar a minha noite. Sento-me ao seu lado e tocando suas mãos macias, poéticas, perguntando se era um sonho. Não tive respostas: ele vagarosamente segurou meus cabelos negros pela nuca e me beijou lascivamente. Quis relutar, pois meu quarto não tem porta e... se alguém acordasse? porém, o desejo se tornara maior que o receio. Que lábios macios, que boca deliciosa, que saliva viciante.
Pôs-me em pé e me livrou da toalha que me vestia. Como Vênus de Milo, passou a me venerar, a analisar meu corpo, a envolver seus dedos longos o meu corpo, num movimento semelhante ao do oleiro moldando seu melhor vaso. Encostara levemente seus lábios em minha nuca, o que me provocou arrepios repletos de ânsia, de vontade de estar cada vez mais perto.
Virei-me, o despi e o abracei. Sua pele tão alva e angelical tão próxima da minha, tão morena, tão sertaneja: era o encontro das imperfeições que se tornaram perfeitas. Nossos lábios se reencontraram, com tanta sede, ora furiosa, ora calmaria. Meus seios inocentes pertos de seu tórax levemente peludo, imponente, quente e nossos braços nos abraçavam um ao outro. De repente, parou; olhou fixamente para meus olhos e, erguendo os braços, me pôs em seu colo, olhando-me, vendo-me, devorando-me com sua iris castanha.
Com o cuidado tal qual de quem carrega um fino cristal, deitou-me na cama e olhando fixamente para meus olhos, deslizava suavemente para a fenda escorregadia entre minhas pernas. Lentamente, sentia-me mulher. Estrelas mudavam de lugar no silêncio da noite. A luta recomeçava, e deliciosamente imaginava a cena "sine qua non" da Carne:
"... Depois foi um tempestuar infreme, temulento, de carícias ferozes, em que os corpos de aconchegavam, se fundiam, se unificavam; em que a carne entrava pela carne, em que frêmito respondia a frêmito, beijo a beijo, dentada a dentada (...) escapavam-se pequenos gritos sufocados, ganidos de gozo, por entre os estos curtos das respirações cansadas, ofegantes..."
Depois, o silêncio. Depois de ter visto cometas, a penumbra. Meu anjo sorrindo, suado, ofegante, beijou-me demoradamente.
Acordei na manhã procurando por ele. O sol quente aos poucos esquentava Tabira.
Foi um sonho.
Que pena que foi apenas um sonho que, um dia, há de concretizar...

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: RIBEIRO, Júlio. A Carne. São Paulo. Martin Claret. 2001

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